19 agosto, 2021

Clarissa Pinkola Estés: Não desanime! Fomos feitos para esses tempos

Meus estimados, meus queridos: Não desanimem. Nós fomos feitos para esses tempos. Recentemente tenho ouvido muitas pessoas que estão profunda e justificadamente atônitas. Estão preocupadas com o estado das coisas em nosso mundo nesse momento. É verdade que é preciso ter colhões e ovário fortes para suportar muito do que vem sendo considerado “bom” em nossa cultura hoje. Um desprezo total pelo que a alma considera mais precioso e insubstituível, e a corrupção de ideais de princípios se tornaram, em algumas grandes arenas da sociedade, “o novo normal”; a grotesca vitória da semana. É difícil dizer qual dos assuntos mais infames de hoje em dia abalou mais o mundo e a crença das pessoas. Essa é uma época em que quase que diariamente nos vemos de queixo caído de espanto e raiva, sentimentos geralmente compatíveis às mais recentes degradações de questões de suma importância para pessoas visionárias e civilizadas. Vocês estão certos em suas avaliações. O brilho e a arrogância a que alguns aspiravam ao endossar atos tão hediondos contra crianças, idosos, pessoas comuns, pobres, vulneráveis e desamparados são de tirar o fôlego. No entanto, eu peço a vocês, suplico que não esvaziem seu espírito lamentando esses tempos difíceis. Sobretudo, não percam a esperança. Pois o fato é que fomos criados para esses tempos. Sim. Durante anos aprendemos, praticamos, treinamos para quando nos encontrássemos justamente nesse exato patamar de comprometimento. Não posso lhes afirmar ainda mais vezes que somos definitivamente os líderes pelos quais esperávamos, e que fomos criados, desde a infância, para esses tempos precisamente. Eu cresci nos Grandes Lagos e reconheço uma embarcação em condições de navegar assim que vejo uma. Em relação às almas despertadas, nunca houve embarcações tão equipadas nas águas do que há no mundo inteiro nesse momento. E elas estão totalmente abastecidas e aptas a sinalizar umas às outras como nunca antes na história da Humanidade. Gostaria de tomar suas mãos por um momento e garantir-lhes que vocês estão muito bem formados para enfrentar esses tempos. Apesar de seus períodos de dúvidas, de suas frustrações em corrigir tudo o que precisa ser mudado, e mesmo sentindo que perderam totalmente o rumo, vocês não estão sem recursos. Vocês não estão sozinhos. Olhe por cima da proa, há milhões de barcos com almas justas nas águas com você. Bem no seu íntimo, você sempre soube que isso é verdade. Embora sua estrutura possa tremer com cada onda durante a tormenta, posso garantir que as longas madeiras usadas na construção da proa e do leme provêm de uma floresta mais nobre. Sabe-se que a madeira de longos grãos serrada aguenta tempestades, se mantém unida, se mantém no prumo e avança, independente de tudo. Temos treinado para tempos sombrios como esse desde o dia em que concordamos vir à Terra. Por muitas décadas, em todo o mundo, almas como as nossas foram abatidas e deixadas para morrer de muitas maneiras, repetidas vezes. Abatidas por ingenuidade, pela falta de amor, pela percepção tardia de alguma coisa mortal, por não perceber com rapidez suficiente e serem emboscadas e atingidas por vários choques culturais e pessoais radicais. Todos nós temos uma herança e uma história de destruição e, embora não nos lembremos disso especificamente, por necessidade aperfeiçoamos o talento da ressurreição. Repetidas vezes, temos sido a prova viva de que aquilo que foi exilado, perdido ou afundado pode ser restaurado à vida. Este é um prognóstico vigoroso e muito verdadeiro para os mundos destruídos à nossa volta, assim como para nós próprios, uma vez mortalmente feridos. Embora não sejamos invulneráveis, nossa capacidade de achar graça nos ajuda a rir diante dos cínicos que dizem “ótima chance”, “gestão antes de compaixão” e outras máximas que evidenciam a total falta do significado da alma. Isso, e o fato de “termos estado no inferno e voltado” em pelo menos uma ocasião importante, nos torna navios experientes, com certeza. Mesmo que não sinta que é, você é. Mesmo que seu pequeno e insignificante ego queira contestar a enormidade de sua alma, o eu menor nunca poderá subordinar por muito tempo o Eu maior. Em matéria de morte e renascimento, você superou o modelo muitas vezes. Acredite na evidência de qualquer um de seus testes e provações anteriores. Eis aqui: Você ainda está de pé? A resposta é sim (e aqui não cabe nenhum advérbio que reduza o peso da sua afirmação). Se você ainda estiver de pé, com bandeiras pouco ou muito esfarrapadas, você conseguiu. Você passou na prova. E conseguiu superá-la. Você está apto a navegar. Em qualquer momento sombrio, há uma tendência a fraquejar em relação ao que está errado ou até então ainda não corrigido no mundo. Não se concentre nisso. Não adoeça com a sobrecarga. Existe também uma tendência ao enfraquecimento ao insistir no que está fora de seu alcance, naquilo que ainda não pode ser. Não foque nisso. Isso significa gastar o vento sem levantar a vela. Somos necessários. É tudo que podemos saber. E embora encontremos resistência, vamos encontrar grandes almas que vão nos aplaudir, vão nos amar e guiar, e nós as identificaremos no momento em que elas surgirem. Você não disse que tinha fé? Não prometeu ouvir uma voz maior? Não pediu por uma graça? Você não se lembra de que estar em graça significa se submeter à voz maior? Você tem todos os recursos necessários para surfar em qualquer onda, para sair de qualquer sarjeta. Como na linguagem dos aviadores e marinheiros, nosso lema é seguir em frente, com tudo em cima. Entendo o paradoxo: se você estudar a física de uma tromba d´água, verá que o vórtice externo gira muito mais rápido do que o interno. Acalmar a tempestade significa acalmar a camada externa, fazer com que, por qualquer meio de compensação, agite-se muito menos, para igualar mais uniformemente a velocidade do núcleo interno, muito menos volátil – até que tudo que tenha sido levado a um funil tão cruel caia de volta à Terra, estabilize, torne-se pacífico novamente. Uma das medidas mais importantes a se tomar para aplacar a tempestade é não se deixar levar por uma onda de emoção ou desespero exagerado, contribuindo acidentalmente para o turbilhão. A nossa tarefa não é consertar o mundo inteiro de uma vez só, mas consertar a parte do mundo que está ao nosso alcance. Qualquer coisa pequena e serena que uma alma possa fazer para ajudar outra, para ajudar parte deste pobre mundo em sofrimento, será de imensa utilidade. Não nos é dado saber quais atos, ou quem fará com que a massa crítica se incline para um bem duradouro. O que é necessário para que uma mudança radical aconteça é um acúmulo de atos: somando, somando mais, continuando. Sabemos que não é necessário que “todos na Terra” tragam justiça e paz, mas apenas um grupo pequeno e determinado, que não desistirá durante o primeiro, segundo ou centésimo vendaval. Uma das ações mais tranquilizadoras e vigorosas que você pode desempenhar para intervir em um mundo tempestuoso é se levantar e mostrar sua alma. Em tempos sombrios, a alma no convés reluz como ouro. A luz da alma lança faíscas, lança labaredas, acende sinais de alerta, faz com que assuntos apropriados sejam estimulados. Mostrar a lanterna da alma em tempos sombrios, ser corajoso e mostrar compaixão para com os outros são atos de imensa bravura e da maior necessidade. As almas em luta captam a luz de outras almas que estão totalmente iluminadas e dispostas a mostrar a sua própria luz. Ajudar a aplacar o tumulto é uma das coisas mais valiosas que se pode fazer. Sempre haverá momentos em que se sentirá desanimado, antes de conseguir ver o “sucesso logo ali na esquina”. Eu também já senti o desespero muitas vezes na vida, mas não mantenho uma cadeira reservada para ele, não vou entretê-lo. Não permito que coma do meu prato. A razão é a seguinte: no mais profundo de mim, eu sei algo, como vocês também sabem. Não pode haver desespero quando você lembra por que veio à Terra, a quem serve e quem o enviou aqui. As boas palavras que dizemos e as boas ações que praticamos não são nossas. São palavras e ações Daquele que nos trouxe aqui. Nesse espírito, espero que escrevam isso na sua parede: quando um grande navio estiver no porto atracado, ele está seguro, não resta dúvida. Mas não é para isso que se constroem grandes navios. Tudo isso vem repleto de muito amor, com preces para que vocês se lembrem de quem vieram e por que vieram a esta linda e necessária Terra. ***************** Não desanime! Fomos feitos para esses tempos (Do Not Lose Heart, We Were Made for These Times) ©2020 por Clarissa Pinkola Estés, Ph.D., todos os direitos reservados. Creative Commons Copyright License por meio do qual o autor e seus editores garantem a permissão de copiar, distribuir e transmitir esta carta sob as condições de que seu uso seja não comercial, de que a carta seja usada em sua totalidade, palavra por palavra, e que não seja alterada, tenha inclusões ou subtrações, e que contenha o nome completo do autor e este texto completo de copyright. Outras permissões via facebook message: dr. clarissa pinkola estés. *********************** Breve biografia Dr. Clarissa Pinkola Estés, uma latina mestiça e longeva ativista de 75 anos continua a testemunhar ante legislaturas federais e estaduais por causas pela justiça social de pessoas sem direito a voto. Ela é poeta, autora de livros — incluindo Mulheres que correm com os lobos — publicados em 42 idiomas, especialista em recuperação pós-traumática, servindo a família sobreviventes ao 11 de setembro, assim como a alunos, professores e sua comunidade após o massacre de Columbine. É psicanalista Junguiana sênior com 50 anos de prática, ex-membro do conselho de justiça do estado do Colorado e a primeira a receber o prêmio “Keeper of the Lore”, de Joseph Campbell.